segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

OS NOSSOS PRETOS

 Professor Sérgio* 

Os portugueses nos legaram muita coisa boa, como o quindim e o amor à poesia, mas trouxeram pra cá alguns péssimos valores, como a violência contra populações frágeis, desumanizando-as. Fizeram isso com os negros e com os indígenas. Os nossos patrícios evoluíram, mas no Brasil continuamos a desrespeitar tanto os indígenas quanto os pretos.

Em Itaúna a memória indígena foi totalmente apagada e a africana, encontra-se em processo de dolorosa dilapidação: a importância da presença negra está sendo varrida da nossa história. Há alguns anos fui à cidade de Bomfim com o vereador Alexandre Campos, que estava procurando registros da migração dos negros pra cá. Chamados por suas habilidades na tecelagem, eles foram fundamentais para a viabilização dessa atividade essencial para a consolidação de Itaúna. São fatos que não podem ser esquecidos.

Com a sua história espalhada por aí, resta à comunidade negra itaunense, como grande símbolo da sua identidade, o Alto do Rosário. Entretanto, com a liberação da construção de edifícios altos, logo ali! a descaracterização daquele espaço é iminente. Se for perdido o domínio que se tem da paisagem, lembranças e vivencias importantes vão sumir. Parte desse prejuízo já aconteceu, quando foram doados terrenos em frente à caixa d’água, terrenos que permitiam visadas espetaculares do vale do Rio São João. Ainda dá tempo de impedir a continuidade da tragédia anunciada pelo Plano Diretor, entretanto, os vereadores são brancos e tradições alheias não interessam a eles.

Os pretos precisam construir lideranças de visão, comprometidas de fato com o coletivo, lideranças que trabalhem para fortalecer a autoestima dessa parcela da população e que compreendam a amplitude da sua história, das suas tradições, que percebam a importância da manifestação concreta dessa comunidade no espaço urbano itaunense.

Diante desta ameaça ao Morro do Rosário, o historiador Charles Aquino e eu começamos a levantar subsídios para impetrar uma ação pública contra o desvario. Mas o trabalho nos reservava uma grande surpresa. Num de seus mergulhos cuidadosos, Charles esbarrou em evidências de que existiu, junto à igreja do Rosário, um cemitério. Fotos antigas também apontavam nessa direção, mas, a consistência veio da existência de um registro nominal dos cidadãos enterrados, mais de duzentos, quase todos pretos. Como não há indícios da transferência dos corpos, supomos que eles ainda estejam lá. Debaixo do asfalto. A situação precisa ser investigada e foi o que solicitamos ao Ministério Público: a Prefeitura foi notificada e há um ano se mantém em silêncio. 

Remexo nesse baú desconfortável, para lembrar que as manifestações deploráveis de racismo não estão apenas lá longe, na Espanha e nem sempre são evidentes como pendurar um boneco num viaduto: estão bem aqui, debaixo dos nossos narizes, disfarçadas de normalidade. Poucos negros têm vez na administração do município. No governo atual, nenhum secretário, nenhum diretor de departamento. Eles não são chamados de macacos, mas são tratados como inferiores. Por serem tão pouco representados, um estrangeiro poderia concluir que os pretos são menos capacitados, menos educados, menos inteligentes, o que seria um absurdo! Mas é o que os números insinuam e é o que precisamos desmentir com veemência e ações concretas.

Sugiro, como gesto inaugural, a reurbanização do Rosário e a criação de um pequeno museu, um memorial, que contasse a história da comunidade desde que os negros se estabeleceram por aqui. Seria uma demonstração do nosso reconhecimento a esses bravos pioneiros. Os dois milhões do calçamento do Bonfim poderiam ser utilizados pra isso... nem precisaria de tanto! O memorial se constituiria num símbolo evidente do nosso compromisso em mudar a atual situação de esquecimento, podendo dar início a uma série de ações de longo prazo, visando integrar efetivamente os pretos, na sociedade itaunense.

Eu sempre me embaralho quando vou chamar os descendentes africanos de pretos ou de negros. Mas na verdade, isso é irrelevante: são pessoas comuns como quaisquer outras e ponto. É como devemos considerá-los: irmãos merecedores de toda a nossa estima e respeito.


Referências:

Texto: Professor Sérgio Márcio Machado* - Arquiteto, Urbanista, Professor M.Arts

Fonte digital: Redação do Jornal Folha do Povo Itaúna Disponível em: https://www.folhapovoitauna.com.br/os-nossos-pretos em 29 de maio 2023, Itaúna/MG

Acervo Ilustrativo: Alberto Henschel - Leibniz-Institut Für Länderkunde in ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do Século XIX. Rio de Janeiro: George Ermakoff Casa Editorial, 2004. p. 182. ISBN 85-98815-01-2. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afro-brasileiros#/media/Ficheiro:Alberto_Henschel_-_Pernambuco_4.jpg

Local: Itaúna, MG, Brasil

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